quarta-feira, 30 de abril de 2008

Felicidades e tristezas

A noção de felicidade e de tristeza que se aprende por aí é errada. As pessoas aprendem a associar valores a essas duas entdades de acordo com os interesses ou crenças dos grupos sociais onde crescem. Dinheiro, poder e sucesso geralmente são geradores de felicidade enquanto saudade, desilusão e solidão são agentes causadores da tristeza. Enquanto a felicidade deve ser buscada incessantemente, a tristeza deve ser evitada com toda força.

O que não é ensinado é que esse anseio por felicidade, diversas vezes frustrado pelo próprio idealismo dessa idéia, é o maior provedor dos sentimentos aliados à triste decepção, da mesma forma que a superação de adversidades, ligadas à temida sensação de tristeza, causa a euforia da felicidade.

Felicidade e tristeza não são extremidades de uma mesma linha do tempo, mas sim dentes da mesma engrenagem: a vida.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

O cenário é uma igreja evangélica no centro velho de São Paulo. Um rebanho enorme acompanha depoimentos das ovelhas que conseguiram alcançar a graça divina. O bispo chama um rapaz de aproximadamente uns vinte e poucos anos para contar sua história de vitória - vitória essa que se manifesta em notas de cinquënta e de cem hoje em dia.

- Boa noite filho!

- Boa noite bispo!

- Qual é sua história?

- Ah bispo, quando eu cheguei aqui a minha vida, minha família tava completamente destruída, né?

- É mesmo? O que aconteceu? A voz do bispo parece preocupada.

- Meu pai tinha sido preso. Estrupo. Acusado de tentá estrupá uma menina lá do bairro, né? Minha van de cachorro quente não tava dando mais dinhêro então minha mãe teve que começá a trabalhá pá fora. Eu não arrumava trabalho e minha mãe tamém não. Nem como empregada doméstica. Foi difícil. Minha irmã tinha fugido de casa, tava nas droga, tomando maconha, cocaína...

- Nossa... Os olhos do bispo parecem tristes.

- E bem nessa época minha irmã descobriu que tava grávida. Quando o namorado dela ficou sabendo ficou doido. Minha mãe teve que começar a trabalhá na rua né? Sabe como é, que nem puta... Foi aí que começaram os cheques devolvidos.

- Meu Deus! Suas sobrancelhas quase pulam fora de seu rosto. Daí que o senhor veio pra igreja?

- Isso mesmo bispo! Eu vi o pograma na televisão e resolvi vim. Era muita humilhação, sabe? Deveno na praça, os amigos se afastava, mãe puta, irmã buchada de vagabundo que batia nela. Tivemo que vendê tudo, sabe?

- E como está a vida da sua família hoje, meu filho? Sua feição demonstra o prenúncio de um triunfo.

- Abençoada Bispo. Tá tudo bem agora. Meu pai apanhou tanto na cadeia que acabou morrendo, o que foi uma benção porque ele tinha um seguro de vida que ninguém sabia. Ganhamo um dinheirão e minha mãe agora não trabalha mais como puta e abriu um puteiro aqui no centro. Minha irmã então, foi uma benção. Acabou brigando com o namorado que bateu nela e ela perdeu o filho, mas graças a Deus ela tá bem. Ela tá tomando uns remédio bom agora e largou as droga. Voltou pra casa e faz um mêis que ela não sai do quarto dela. Tá bem melhor!

- E você meu filho? Está trabalhando hoje?

- Tô sim, bispo! Hoje eu sou pastor!

- Aleluia irmão! A voz do bispo atinge oitavas altíssimas, reverberando pelos vitrais da igreja. O rebanho todo repete o grito de fé. Clamem a Deus, irmãos! Nenhum deles parece saber o que é clamar. Deus quer mudar a sua vida também. O bispo ergue os braços, o rebanho ergue suas patas. Ele cerra as mãos e os olhos com força e inicia uma oração em tom suplicante.

Ao final da oração todos se sentem pessoas melhores. Uns berram amém, outros aleluia, mas nunca, nunca antes do bispo.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Por que os homens não dançam... ou como o preconceito se perpetua nas entrelinhas.

- Eu curto mina que sabe dançar...

- É né? Elas se mexem de um jeito...

- Aham. Tudo acaba virando uma performance. Tudo parece milimetricamente ensaiado. É bonito de se ver.

- Sem contar o rebolado.

- Ah, o rebolado...

- E por que será que tem muito mais mulheres que gostam de dançar que homens?

- Como assim?

- Ah, você não ouve um cara falando que quer sair pra dançar, ouve? É muito mais normal ouvir uma mina falando isso...

- Mas eu acho que o gosto da dança é inerente ao ser humano. Não mais à mulher que ao homem.

- Mas por que as minas se identificam mais com a dança?

- Ah, sei lá. Eu aprendi desde pequenininho que balé era coisa de mulher. Ou coisa de viado. Aprendi também que viado era uma coisa que eu não devia querer ser. Dois mais dois são quatro. Não foi assim com você também?

- Ha ha ha! Foi!

- Daí você começa a lembrar das festinhas de primeiro, segundo colegial. Toda a molecadinha com seus catorze, quinze anos. Cada um ali com medo de não ser aceito pelo seu grupo, todos precisando de afirmação. Na roda de meninas todas pulam e giram, parecem crianças - eram crianças na verdade - e parecem se divertir muito. A roda de moleques ouve o mesmo ritmo, mas fazem pouco mais que balançarem os ombros. Se eu me mexer muito posso parecer viado, pensa cada um deles.

- E daí?

- Daí o tempo vai passando, a gente percebe que no nosso meio ninguém se mexe daquele jeito, e termina por associar a dança como coisa de menina ou de viado. Passa a ridicularizar qualquer moleque que se atreva a dançar e acha aquilo uma bobagem...

- É triste...

- Aham. Assim o máximo da dança que a maioria dos homens consegue desempenhar é um medíocre balançar de ombros e queixo, sem tirar os pés do chão, com um medo de se sentir ridículo ou parecer viado...

- Ou então se droga, fala que tava muito louco e chacoalha o corpo feito um desesperado desengonçado.

- É! O doce retiro que a loucura proporciona. Mas e se um dia seu filho virar pra você e falar que quer fazer balé? Ser dançarino? Levar a vida nos palcos com aquelas roupas justas qúe só mostram o saco do cara?

- Dou uns tapas nele, boto ele na natação e compro uns carrinhos pra ele brincar...

sábado, 12 de abril de 2008

O fenômeno da Comoção Induzida

Já tem alguns dias que o Brasil todo passa por um estado de hipnose. Estamos todos comovidos, revoltados, tocados profundamente por algo muito distante da maioria de todos nós. Como espectadores que torcem para o herói vencer o mau-caráter e ficar com a mocinha ao final do filme, milhares (ou milhões?) de pessoas acompanham passo a passo a mídia para conseguirem a resposta da pergunta do ano: Quem matou Isabella? A pipoca, porém, é feita em casa, haja vista que o caso ainda não foi para o cinema. Uma garota é assassinada. Os principais suspeitos são presos preventivamente.

Polícia, peritos, todos os órgãos competentes e oficiais são chamados ao caso para a tão sonhada apuração da verdade. Pistas aparecem, histórias caem em contradição. Suspense. Ninguém sabe o que aconteceu. Isso é tão normal no dia a dia de São Paulo, que em dezembro de 2007 foram comemoradas as primeiras 24 horas sem homicídios na cidade, desde a década de 50. Nós temos o sangue-frio. Nós vemos mendigos no centro velho, dispostos no chão como sacos de lixo, sem saber se estão vivos ou mortos e reagimos com nojo, com asco. Até que fica banal. Roubo, estupro, negligência, atropelamento, tudo isso já virou arroz com feijão. O que acontece de diferente nesse caso?

A diferença é a exposição da história. Todos os canais, quase que simultaneamente, estão acompanhando todos os mais minuciosos e estúpidos detalhes. A investigação é atualizada todos os dias por profissionais que dizem estar unicamente buscando a justiça. Um sinal de lesão corporal, alguém que troca de camiseta, uma análise grafológica da letra de mão dos envolvidos, qualquer bobagem que possa ser relacionada ao caso é trazida à tona. Os peritos aparecem no jornal de jaleco, fazendo exames, igualzinho àquele programa de televisão que fazem lá fora, como é mesmo o nome? A família, por confiança no poder da mídia, ou por alguma morbidez, se deixa levar e dá um prato cheio para a alcatéia de repórteres: imagens de júbilo e depoimentos com lágrimas e soluços, os dois extremos de emoção que amarram essa corrente podre sensacionalista que se espalha por toda a mídia brasileira.

As pessoas começam a comentar nas ruas: eu acho que foi fulano, eu acho que foi ciclano. A notícia começa a tomar proporções de ficção. Um reality show, uma novela ao vivo, feita sob o bordão da luta pela justiça. Uma comoção articulada, induzida - feita com muito mais minuciosidade que se enxerga e muito menos espontaneidade que se imagina - nasce no coração de todo um povo. Gente que não conhece ninguém envolvido, chora. Outros ficam com ódio. Outros tristes, perdem a fé na humanidade. Fica a impressão que o mundo efetivamente parou para esperar a solução desse caso. Nada mais é importante enquanto o bandido não estiver atrás das grades. Toda a perversão, todo o crime cometido no país é simbolizado naquele ponto, naquela janela, naquela menina, e se o assassino for preso viveremos felizes para sempre. Três dias depois da prisão do dito cujo, poucos se lembrarão do caso Isabella.

Mas pior que a comoção artificial gerada por essa articulação de profissionais treinados para tanto, é a figura que se projeta do jornalista. O mensageiro da verdade, correto, honesto, puro, que luta lado a lado com a polícia para resolver esse tão sórdido mistério. Os jornalistas, a alcatéia toda, fazem plantão na porta da família, mendigando informações do dono do lava rápido da rua de cima, da vizinha que mora no fim da rua há 30 anos, do carteiro que sempre fazia aquele trajeto. Tudo em nome da liberdade de imprensa. Liberdade de imprensa que confina toda uma família dentro de casa e que implica o dever de falar à população sob tormenta. O povo tem o direito de saber, eles vociferam. Evocam a ditadura militar, tempos de repressão, de receitas de bolo na primeira página do jornal. É isso que vocês querem? Nãããão, repetem os hipnotizados. Nós o saudamos, ó nobre cavaleiro, defensor dos oprimidos. São heróis, são exemplos, igualzinho àquele programa de televisão que fazem lá fora... como é mesmo o nome?

Todos se perguntam o porquê. A cena é chocante. Perturba. Aflige. Uma criança é quase sempre vista como o símbolo máximo da inocência do monstro chamado homem. Ela é pura, livre de conceitos nojentos como corrupção ou pecado. É ela que nos faz acreditar no futuro melhor, naquele dia em que tudo será como deveria ser, e talvez por isso custemos a acreditar quando ela cresce e se torna um de nós. Mas nada disso tem a menor importância pra esse caso. Essa não é uma história sobre a perda da inocência na sociedade ocidental, sobre monstros, sobre crueldade e como ela é inerente ao ser humano. Aliás, sequer é uma história. É só uma articulação da forma, na qual o conteúdo pouco interessa. Duas caras, Suzane Richthofen, CSI Miami, Desejo Proibido, João Hélio, tanto faz...