quinta-feira, 31 de julho de 2008

Gênese

O seu Empírico sempre foi muito ponderado, sujeito muito tranquilo. Meio sidudo às vezes, nada além de seu jeito contido de falar. Tratava qualquer um com cordialidade, sorrindo simpático sem desgrudar os lábios. Observava as pessoas ao seu redor com minudência, reparando nos hábitos e nas manias de quem lhe cruzasse a vista. Era fascinado pela singularidade dos seres huhmanos.

Algum tempo atrás o seu Empírico casou com a dona Nonsense. Casaram na praia, ao som de atabaques e violinos. Ela organizou toda a cerimônia, desde os convites em folhas de carnaúba, até os canapés de pimenta com alho. O marido só dava de ombros. Eu nunca vi isso, e sorria. A dona Nonsense é gostosa, fez uma lipo, botou silicone, fala sozinha, tropeça sozinha e coleciona gravatas.

Casal harmonioso. Tiveram um filho, mas ninguém nunca soube qual foi a transa que o concebeu. Também, por que saberiam?

Pode ter sido na última transa da lua de mel de um mês. Tinham passado o dia todo caminhando, voltaram ao hotel por volta das sete horas da noite. Ainda era claro. Precisavam estar prontos para saírem às dez. Pouco tempo. Banho. Mala. Cansaço, enfim. Transaram naquela noite como se cumprissem um protocolo. Estafados, com pressa, pensando em traveller-cheques e lembrancinhas. Ele gozou com dificuldade. Ela sequer fingiu. Levantou-se de cima do marido e foi tomar banho.

Quem sabe foi naquela quinta-feira, noite de muito carinho. A esposa chegou do trabalho - trabalhava espantando pombas de uma praça no centro da cidade, com seu gavião de estimação - e encontrou a casa toda apagada. Seu Empírico esperava-a com uma mesa de jantar posta, à luz de velas de diversas cores.

- É uma noite especial?
- Claro querida!
- Por quê? O que celebramos hoje?
- O hoje?
- O hoje?
- Claro!
- E por que o hoje é especial?
- Por que estamos nós dois aqui, juntos. E eu te amo!

Ela se emocionou com o gesto gratuito de amor do marido. Trocaram beijos emocionados, ambas bocas sorrindo deliciadas uma com a outra. Jantaram, tomaram vinho, dançaram, tomaram champagne. Transaram com intimidade, do jeito que ela mais gostava primeiro.

Aquele carnaval. Bem provável que tenha sido naquele carnaval, quando eles terminaram. A briga foi feia. Nunca tinham se estapeado. Você tava olhando pra bunda dela, não tava? Não. Ah não tava!? Não, porra! Seu cachorro! Ela estava um pouco agressiva, nervosa, talvez por causa da cocaína que disseram que viram ela cheirar com um cara no banheiro. Trocaram ofensas das mais canalhas, ofensas de quem conhece o outro e sabe como machucar. Ele levou um tapa na cara e a empurrou. Ela se levantou e foi pra pousada fazer as malas.

- Onde você pensa que vai?
- Pra longe de você.
- Sua maluca. Por que você quer foder esse casamento, heim? Primeiro foi o aniversário de casamento dos meus pais, depois o ano novo e agora isso?
Ela se cala, tentando engolir a vergonha que escapa pelas bochechas. Começa a chorar. Ele tenta consolá-la. Tira a mão de mim. Ele pula em cima dela, abrindo seus braços e pernas na cama. Beijos com fúria, no pescoço, no colo, beijos que tentam sugá-la inteira de uma vez. Palavras se espremem entre os estalos dos beijos. Eu ainda te amo, sua louca. Ela segue imóvel, olhos distantes e úmidos procuram algo. Algo que suavize dor, que volte no tempo, que faça dormir, que a deixe mais bonita. Sua feição estática só se transforma durante a penetração; as sobrancelhas. Arde. Seco. Com força. Ele a machuca, esquarteja enquanto copula. Por fim, expulsa seus instintos que dominavam seu corpo pra dentro dela, que soluça. Soluço de choro, de uma tristeza que não se entende.

Uma dessas transas, com certeza, foi responsável pelo filho único do casal. Ou filha, não se sabe. Tampouco se sabe se ele - ou ela - foi o melhor aluno da sala ano passado, foi promovido a gerente na loja de sapatos que trabalha, ou tenha pulado de pára-quedas. Cor dos olhos, altura, peso, comida favorita, nada disso. Especula-se muito quanto à sua idade e sua conduta. Más línguas dizem que usa drogas, que participa de rituais pagãos envolvendo sexo e alucinógenos naturais, boas línguas dizem que é moça direita e vai em igreja evangélica todos os dias. Ou será o contrário? Enfim, seu rosto é uma máscara sem cor ou detalhes, sobre um corpo sem forma e sem pano que o cubra. Um espectro, uma massa amorfa talvez, algo que espera um caminho, um roteiro para sua vida, uma escala de valores, um jogo de interesses, qualquer coisa. Espera uma mão divina que venha a decidir seu passado, escrever seu presente e escolher seu futuro.

Só se sabe seu nome: Personagem.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Novo capítulo

Salve povo!!!

Criei um novo capítulo no blog: Fragmentos. Nesse capítulo eu vou escrever alguns pedaços dos livros que sempre começo e nunca termino, ou daqueles que não consegui tirar da cabeça ainda. Logo abaixo já tem o primeiro. Como são trechos de um cenário maior, provavelmente não terão finais impactantes ou reviravoltas mil como as crônicas têm - muitos inclusive começarão sem pé e terminarão sem cabeça - mas acho que vale a pena divulgar.

Aguardo o feedback de vocês. Espero que gostem. Tenho andado meio relapso com o blog ultimamente, mas isso é culpa de um relaxo pessoal aliado a uma rotina de revisor de texto, o que me faz chegar em casa e sair correndo da frente de qualquer editor de texto que se possa imaginar.

Mas estamos aí...

Como sempre, obrigado a todos que passam por aqui e mais ainda àqueles que me ajudam a melhorar, deixando aqui suas palavras.

Boa semana pra todos.

Henrique Fogli

Diálogo de "A máfia da mídia" - Pedaços do meu suposto primeiro livro de título provisório...

- Então, você lembra quando deu na tevê uma história de propina cobrada dos camelôs pelos fiscais da prefeitura?

- Mais ou menos. Porquê?

- Os caras mostraram uns grampos telefônicos "aspas feitas com os dedos" autorizados pela justiça "fecha aspas", uns depoimentos de silhuetas com vozes distorcidas - que na verdade pode ser qualquer pessoa no mundo lendo um texto; alguns documentos, diários dos caras envolvidos, enfim. É uma meia hora em rede nacional execrando a prefeitura; chama de corrupta, inoperante, ultrapassada, uma desgraça das mais brasileiras, e que acaba com um "procuramos a prefeitura e ela não se manisfestou". Qualé?

- Que que tem?

- Como assim, que que tem?

- Qual o problema da história?

- Nada. Mas você entende que é uma história?

- Como assim?

- Isso foi encenado.

- Hã?

- Tudo isso que você viu na tevê sobre o assunto, foi armado, esquematizado.

- Você tá ficando maluco!

- Cara, eu escrevo essas merdas. Fui eu que escrevi esse roteiro...

- Que jeito?

- É o que eu faço lá... Meu trampo lá, lembra? É isso que eu faço... E sim, eu tô ficando maluco...

terça-feira, 8 de julho de 2008

Sonhando com a vida...

Era de manhã, bem cedo. Vinícius tinha se movimentado mecanicamente desde o despertar de seu insuportável alarme. O dia começava bastante frio. O apartamento estava uma bagunça. Não era possível encontrar nada naquela bagunça.

O espelho lhe mostrou olheiras fundas, tristes, sob olhos que custavam a se abrir. Jogou uma água - gelada - no rosto, esticou todos os membros do corpo espreguiçando-se e sentiu uma pequena cãibra na panturrilha esquerda. Ficou puto. Lembrou que a muito não batia mais aquela bolinha de quarta-feira com o pessoal da vila. A barriga não era tímida em mostrar sua inadequação aos padrões estéticos de sua época, da mesma forma que sua testa estampava as marcas do tempo, aumentando a cada ano.

Também, de que jeito? Todo dia entrando às 8h na firma, saindo às 20h quando tinha sorte. Hoje tem reunião depois do almoço. Reunião depois do almoço é de chupar o saco do velho, pensou. Depois da reunião tinha que ir até a fábrica na zona norte. Antes, tinha dois clientes pra visitar logo ali, passando interlagos. O trânsito dava desespero antes de sair de casa.

O dinheiro era aquela coisa: não faltava mas não sobrava nada. Era uma vida de necessidades básicas. Seu único luxo era o exemplar mensal da revista de carros importados, carros que ele nunca poderia comprar. Gostava de ver as formas e apetrechos novos, mas detestava ver algum deles na rua. Na revista eles pareciam um sonho, mas quando estavam por perto travestiam-se de pesadelo. Ficavam ainda mais distantes, sempre com proprietários malditos que não lhes davam valor.

A mulher não tinha aparecido ainda. Nunca aparecera. Apenas aquelas que aparecem e desaparecem quando se negocia com elas. Mas nada espontâneo. Apaixonou-se por algumas, é verdade, mas isso só lhe rendia mais custos, fosse com presentes, com bebidas ou com cigarros.

Precisava fazer a barba. Precisava voltar a jogar bola, comer melhor, procurar um emprego decente. Precisava mudar de vida, comprar aquele negócio que faz suco, ou aquele que te deixa em forma sem esforço. Precisava de uma mulher que cuidasse dele, como a mãe dele fazia quando ele era criança. Preciso fazer a barba.

Olhou-se no espelho enquanto apertava a lâmina de barbear contra seu rosto e sentiu nojo. Sentiu raiva, um saco estufado de tão cheio. Sentiu frio e medo. Foi arrancando os pelos de seu rosto como se arrancasse desgraças de sua vida. O fio da navalha contra a sua pele lhe dava um prazer diferente, novo. Algo novo, finalmente. Começou tirando as costeletas que usava havia muito tempo. Cerrou os dentes quando se cortou, sentindo uma mistura de choque com calafrio. Apertou com mais força a lâmina contra o rosto, causando pequenos porém fundos cortes em sua pele. Riu. Usou da mesma força para continuar seu barbear e logo estava coberto de corte no rosto. A dor não lhe perturbava, muito pelo contrário. Continuou o ritual do cotidiano, cada vez com mais força no punho. Pouco a pouco foi arrancando a pele de sua cara, que se cobria de tons vemelhos. Achava graça. Olhou para as sobrancelhas e lancetou-as num só golpe. Esticou o lábio superior, já muito ferido no barbear do bigode, e decepou todo seu lado esquerdo. Não havia aflição na dor, só riso. Viu aquele seu pedaço separado de seu corpo e pensou que assim conseguiria separar sua vida da triste rotina que a dominara. Um pedaço da ponta do nariz seguiu à orelha direita. Era engraçado seu rosto desfigurado no espelho. A parte abaixo do queixo, que sempre deixava alguns pelos encravados, marcou o fim da limpeza espiritual pela qual passava. Cravou a ponta da lâmina com toda a força no pescoço, e enquanto sentia um grande volume de sangue deixando seu corpo, Vincius gargalhava de deleite, já delirando com uma outra vida bem melhor que essa. Perdeu os sentidos pouco a pouco, um a um. Quando seu corpo despenca, sua mão afunda ainda mais o metal dentro de seu corpo.

Acordou.

Olhou para o lado e viu a mesma cama vazia de sempre, com roupas jogadas ao seu redor, pelo chão. O frio que assobiava pela janela, a porta do banheiro quase fechada que não escondia seu cheiro típico. Levantou e se olhou no espelho. Pegou a navalha com a mão e morreu de raiva por não ter coragem de ir atrás de seu sonho.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Poemeto Romântico

O querer.
O querer bem
e querer muito,
muito além
de entender
esse prazer
que dorme comigo,
que acorda comigo
e mora em você.