terça-feira, 8 de julho de 2008

Sonhando com a vida...

Era de manhã, bem cedo. Vinícius tinha se movimentado mecanicamente desde o despertar de seu insuportável alarme. O dia começava bastante frio. O apartamento estava uma bagunça. Não era possível encontrar nada naquela bagunça.

O espelho lhe mostrou olheiras fundas, tristes, sob olhos que custavam a se abrir. Jogou uma água - gelada - no rosto, esticou todos os membros do corpo espreguiçando-se e sentiu uma pequena cãibra na panturrilha esquerda. Ficou puto. Lembrou que a muito não batia mais aquela bolinha de quarta-feira com o pessoal da vila. A barriga não era tímida em mostrar sua inadequação aos padrões estéticos de sua época, da mesma forma que sua testa estampava as marcas do tempo, aumentando a cada ano.

Também, de que jeito? Todo dia entrando às 8h na firma, saindo às 20h quando tinha sorte. Hoje tem reunião depois do almoço. Reunião depois do almoço é de chupar o saco do velho, pensou. Depois da reunião tinha que ir até a fábrica na zona norte. Antes, tinha dois clientes pra visitar logo ali, passando interlagos. O trânsito dava desespero antes de sair de casa.

O dinheiro era aquela coisa: não faltava mas não sobrava nada. Era uma vida de necessidades básicas. Seu único luxo era o exemplar mensal da revista de carros importados, carros que ele nunca poderia comprar. Gostava de ver as formas e apetrechos novos, mas detestava ver algum deles na rua. Na revista eles pareciam um sonho, mas quando estavam por perto travestiam-se de pesadelo. Ficavam ainda mais distantes, sempre com proprietários malditos que não lhes davam valor.

A mulher não tinha aparecido ainda. Nunca aparecera. Apenas aquelas que aparecem e desaparecem quando se negocia com elas. Mas nada espontâneo. Apaixonou-se por algumas, é verdade, mas isso só lhe rendia mais custos, fosse com presentes, com bebidas ou com cigarros.

Precisava fazer a barba. Precisava voltar a jogar bola, comer melhor, procurar um emprego decente. Precisava mudar de vida, comprar aquele negócio que faz suco, ou aquele que te deixa em forma sem esforço. Precisava de uma mulher que cuidasse dele, como a mãe dele fazia quando ele era criança. Preciso fazer a barba.

Olhou-se no espelho enquanto apertava a lâmina de barbear contra seu rosto e sentiu nojo. Sentiu raiva, um saco estufado de tão cheio. Sentiu frio e medo. Foi arrancando os pelos de seu rosto como se arrancasse desgraças de sua vida. O fio da navalha contra a sua pele lhe dava um prazer diferente, novo. Algo novo, finalmente. Começou tirando as costeletas que usava havia muito tempo. Cerrou os dentes quando se cortou, sentindo uma mistura de choque com calafrio. Apertou com mais força a lâmina contra o rosto, causando pequenos porém fundos cortes em sua pele. Riu. Usou da mesma força para continuar seu barbear e logo estava coberto de corte no rosto. A dor não lhe perturbava, muito pelo contrário. Continuou o ritual do cotidiano, cada vez com mais força no punho. Pouco a pouco foi arrancando a pele de sua cara, que se cobria de tons vemelhos. Achava graça. Olhou para as sobrancelhas e lancetou-as num só golpe. Esticou o lábio superior, já muito ferido no barbear do bigode, e decepou todo seu lado esquerdo. Não havia aflição na dor, só riso. Viu aquele seu pedaço separado de seu corpo e pensou que assim conseguiria separar sua vida da triste rotina que a dominara. Um pedaço da ponta do nariz seguiu à orelha direita. Era engraçado seu rosto desfigurado no espelho. A parte abaixo do queixo, que sempre deixava alguns pelos encravados, marcou o fim da limpeza espiritual pela qual passava. Cravou a ponta da lâmina com toda a força no pescoço, e enquanto sentia um grande volume de sangue deixando seu corpo, Vincius gargalhava de deleite, já delirando com uma outra vida bem melhor que essa. Perdeu os sentidos pouco a pouco, um a um. Quando seu corpo despenca, sua mão afunda ainda mais o metal dentro de seu corpo.

Acordou.

Olhou para o lado e viu a mesma cama vazia de sempre, com roupas jogadas ao seu redor, pelo chão. O frio que assobiava pela janela, a porta do banheiro quase fechada que não escondia seu cheiro típico. Levantou e se olhou no espelho. Pegou a navalha com a mão e morreu de raiva por não ter coragem de ir atrás de seu sonho.

Um comentário:

Vanessa Lee disse...

Nossa! Mas até prá desistir é necessário coragem. Ou será que desistir é que é covardia? Velho dilema!

Fiquei aqui imaginando a cena, credo! E de repente ele acorda...