segunda-feira, 31 de março de 2008

Os amores que passam

Douglas acordou tranquilo. Era um dia normal. Só após o banho, depois de todas rotineiras atividades matinais que disse em voz alta, assustado, como se alguém fosse ouvi-lo:

- Tá tudo cinza!

Douglas acordara enxergando tudo em tons de cinza. O verde das plantas, as cores dos lindos quadros que decoravam sua sala de estar, até as cores da televisão. Tudo era uma variação de tons de cinza.

- Só pode ser sonho!

Mas não era.

- Deve ser a ressaca...

A dor de cabeça sim. Mas o mundo cinza não. Tentou se lembrar da noite passada. Ela tinha sido colorida, disso tinha certeza. Algo teria acontecido enquanto dormira? Tentou se lembrar da última recordação de cor que tinha em mente. Eram os olhos azuis de Mariana, sim, aqueles lindos olhos azuis, de um azul escuro sem igual no mundo. Mas eles estavam vermelhos. Mariana chorava, chorava muito. Dizia coisas, gritava com ele. Ele não se lembrava das palavras. Não sabia o que era sonho e o que era lembrança mais. Resolveu ligar pra ela.

- Alô Mari?

- Seu cachorro!

Era tudo o que precisava ouvir. Tudo ficara claro, ainda que em tons de cinza. A Juliana e ele... a Mariana chegando... abrindo a porta... vendo os dois... a risada de Juliana... ele seguindo Mariana... aqueles olhos azuis, enormes, brilhantes como pérolas, cheios de lágrimas... ela jogando a aliança... Até então tava tudo colorido. Até o tapa foi em cores.

- Calma Mari... não é nada do que você tá pensando... Ele a puxava pelo braço.

- Eu não tô pensando nada Douglas... eu vi! Ela, desvencilhando-se dele, andava com pressa em direção ao carro.

- Olha pra mim Mari, fala comigo.

- Eu tô com nojo de olhar pra você. De falar com você. Some da minha vida.

- Pára meu amor. Não fala assim... vem cá que - Um tapa não o deixou terminar a frase.

- "Meu amor" o caralho! Nunca mais me chama de "meu amor". Você perdeu esse direito quando enfiou seu pinto naquela vagabunda. Como você pôde?

E antes que ele conseguisse pensar em, ou dizer qualquer coisa, ela tinha alcançado dentro do carro uma espécie de fichário - Tá vendo isso aqui?

- Sim - bem baixinho e miúdo.

- Isso aqui é um álbum, cheio de poesia e desenho, contando a história dos nossos 5 anos juntos. A idiota aqui ia te dar de presente hoje. Passei o dia inteiro pintando essa merda, colando fotos... e pra quê, heim? Eu olho pra isso agora e sabe o que vejo? Vejo tudo borrado e cinza...

- Pára amor, que exagero...

- Exagero é? Pois é assim que me sinto... tá tudo sem cor, sem vida. E se jogar um amor no lixo como você acabou de fazer não mexe contigo quem sabe amanhã, quando você olhar pra esse álbum, sóbrio e com um pouco mais de vergonha na cara, você consiga ver graça e cor nele. Porque eu não consigo mais.

Foram as últimas palavras dela. Depois disso arrancou o carro e sumiu. Ele pegou o álbum e voltou pra Juliana. Mais tarde voltou pra casa.

Sua vida estava literalmente cinza sem Mariana. O álbum era lindo até sem cores. Pensou em dar um jeito nessa loucura toda e pegou o telefone novamente. Folheava página por página calmamente enquanto ninguém atendia sua ligação. Finalmente um alô o saudara do outro lado da linha e marcaram de se encontrar na mesma noite. Ele, lógico, levou o álbum consigo.

Chegando no lugar do encontro, Douglas, ainda dentro de um mundo todo cinza, deu um abraço apertado e um beijo molhado na sua garota. Trocaram palavras aparentemente sinceras de amor e carinho. Quando ela viu o álbum, não prendeu o riso. Ria alto, de escárnio, um riso que saía com força do peito. Ria mais a cada página que virava. Suas gargalhadas pularam para a boca de Douglas que só então percebia que os olhos cinzas de sua parceira começavam a tomar cor. Um mundo cinza sem Mariana? Não com os lindos olhos verdes de Juliana sorrindo por perto...

sábado, 15 de março de 2008

A lista

Um casal conversa em voz alta, cada um num cômodo da casa. Ela pinta as unhas de lilás no banheiro enquanto ele mexe em algumas gavetas no quarto. Tudo muito dia-a-dia.

- Querida, você viu a conta do meu celular?
- Não. Já olhou no criado-mudo?
- Já...
- Na cômoda?
- Também não tá.
- Vê se eu não coloquei na minha bolsa por engano.
- Oquei!

Ele vai até a sala em busca da bolsa da mulher que tem bolinhas de algodão entre os dedos dos pés e está completamente focada em sua pequena vaidade. Ele tenta em vão achar algo útil ao seu universo dentro da bolsa da esposa. Ela, só tira os olhos dos dedos quando percebe o marido em pé à porta do banheiro chacoalhando um papel ao som de um ríspido "O que diabos é isso aqui?".

- Isso aqui o quê, querido? ela responde, tentando ganhar tempo percebendo a besteira que fez ao deixá-lo fuçar em seu porta-segredos.
- Prós e contras dele! Que merda é essa?
- Ah! É uma brincadeira que eu tava fazendo com as meninas.
- Brincadeira? Número um: ronca feiro um porco...
- Deixa isso pra lá, meu butuco. Ela tenta um gesto de aproximação, mas recua ao perceber que o esmalte ainda está fresco. Estava ali havia horas e não era uma briguinhha besta que ia botar a perder todo o trabalho de uma manhã de sábado.

- Sua demais quando transa?
- Às vezes só. Larga isso butuquinho, vem cá!
- Bronco? Sobrancelhas grossas demais e sempre desarrumadas? Muitos pelos nas costas? É assim que você me vê? Um porco peludo e suado sem boas maneiras? Sua voz ficava cada vez mais alta e ofegante.

- Magina, tutucho. Era uma brincadeira que a gente tava fazendo e...
- Não sabe dançar. Não se dá bem com a minha família. Bebe demais. Grita e bufa muito. Eu te envergonho?
- Claro que não meu amor. Larga isso e vamos...
- Mal gosto pra se vestir!
- Que tal se a gente...
- Meio mosca-morta!?
- ...tomasse um...
- Pinto meia-boca? Os gritos do marido reverberavam nas paredes do banheiro, seguidos de longos arquejos de ar.

- Pinto meia-boca? Peraí! Deixa eu ver essa lista.
- Toma! diz o marido arremessando a folha, balbuciando resmungos incompreensíveis enquanto ajeita suas sobrancelhas no espelho.
- Porra! Essa lista aqui é da Ritinha.
- Quê?
- Essa lista é da Ritinha. Sobre o Alberto.
- Pois parece a tua letra.
- E é a minha letra. Ela ia falando e eu anotando. Bem que eu achei esquisito...
- Tem certeza? Ele tira a folha das mãos da mulher que lhe parece muito convicta no seu discurso. Esses pontos positivos aqui não condizem com o Alberto.

- Como assim?
- Ganha bem e acredita em tudo o que eu falo. Ele é manobrista de um estacionamento e vive dando porrada nela de tanta desconfiança.
- Ah zuzinho, isso aí já é problema deles né?
- Sei...

Mas finalmente o esmalte secou e ela pôde abraçar o marido e confortá-lo com carinhos, dando o problema por solucionado. Ele pediu desculpas e prometeu comprar-lhe um vestido novo para irem a um casamento naquela noite. Ela, quando estavam saindo para a compra do regalo, perguntou:

- Você vai sair na rua assim?
- Assim como?
- Nada Marcelo. Esquece...

segunda-feira, 10 de março de 2008

Serenidade

Kátia brigava o tempo todo com Marquinhos. Não importava o quão gentil, meigo e adestrado ele fosse, ela sempre arrumava um motivo.

- Chocolate branco? Quatro anos de namoro e você me compra um ovo de chocolate branco? Será que quatro anos não foram suficientes pra você descobrir o quanto eu odeio chocolate branco? E jogou o presente na cara do namorado.

Marquinhos nunca respondia, nunca levantava a voz. Isso deixava Kátia ainda mais ensandecida.

- Calma amor, não tem problema. Eu compro outro.

- Você é um idiota mesmo. Não sei por que perco meu tempo com você.

- Porque eu te amo querida! Por isso! E dava um beijinho na testa da namorada.

Nada minava sua paciência. Nada abalava seu amor. Kátia, a cada dia, buscava novas maneiras de testar seu já então noivo.

- Ai! Que que é isso amor?

- Quero espaço. Vai dormir no sofá.

- Tá bom meu anjinho. Não precisa me derrubar da cama.

Seis anos e nada. Kátia não conseguia arrancar uma palavra de ódio de Marquinhos. Chegou a espalhar um boato de que tinha um amante, só para irritá-lo, mas nem isso surtia efeito. Pensava em desistir do casamento. Não conseguiria viver com um homem tão estável, tão ponderado. Já não sentia mais paixão, carinho, nada. Era chegado o dia do casamento. Ela entrava no altar a contragosto.

- Kátia Ferreira dos Santos, você aceita esse homem como seu legítimo esposo?

- Fazer o quê? Sim...

- Marcos Oliveira, você aceita essa mulher como sua legítima esposa?

Marquinhos, antes de pensar em responder à pergunta do padre, foi tomado por um instinto animal, muito mais forte do que ele. Respirou fundo e, sem sequer desviar os olhos do padre, desferiu um cotovelaço com a força de um coice na boca da sua futura esposa. Foi um alvoroço. Quase uma briga de bar. O pai de Kátia a arrastava pra fora do altar quando ela recobrou consciência. Seus gritos de "Eu te amo", um pouco desarticulados pelo sangue na boca e os dentes frouxos, se sobrepunham à toda a algazarra. Marcos, alheio à toda confusão, suspirou longa e calmamente e respondeu ao padre.

- Agora sim!

quinta-feira, 6 de março de 2008

A São Paulo das oportunidades

Um carro parado no farol em uma esquina de São Paulo. Um homem bem vestido, de terno com risca de giz e gravata combinando com a camisa, aproxima-se da janela do motorista com uma pequena garrafa com água e um rodinho de pia. O motorista, desatento, não compreende.

- O quê?
- Pode lavar o vidro aê, chefe?
- Como assim?
- Lavar o vidro do carro por um trocadinho. Vai aê?
- Ué! Mas você faz isso da vida?
- Sim! É um dos serviços que prestamos aqui na área. Vai aê?

O motorista, perplexo com a cena, o personagem, o diálogo em si, pergunta: Quem prestamos?

- Eu e meus colegas de rua. Nos sindicalizamos e montamos uma empresa para melhor atender nossos clientes nos faróis da Grande São Paulo.
- Puxa.
- Aqui ó! Fica com meu cartão e com esse panfletinho imobiliário.
- Brigado. Mas por que eu precisaria do teu cartão?
- Caso encontre algum farol por aí que precise dos nossos serviços é só entrar em contato que mandamos um representante. Oferecemos diversos serviços. Vamos lavar esse vidro aê?
- Não obrigado. Lavei o carro essa manhã.
- Hmm. Bala de goma? Halls? Chiclete?
- Não, não. Obrigado.
- Amendoin torrado? Água gelada?
- Não... O motorista começa a olhar o semáforo do cruzamento, contando os segundos. Tá no verde ainda... bosta!

- Vamos fazer um cartão de crédito?
- Não sabia que vendiam cartões de crédito no farol.
- Estamos diversificando! Somos pioneiros nesse mercado. Quer um suflair?
- Não, obrigado.
- Alho!? Carregador para celular? Matrícula em faculdade de direito?
- Não não não...
- Show de malabares? Piada de português? Também atuamos na indústria do entretenimento...

- Não obrigado. Olha, o farol abriu. Obrigado pelo seu atendimento, disse o motorista esticando o braço pra fora com algumas moedas na mão.
- E isso é pra quê? Perguntou o vendedor, alcançando a mão do cliente, contando as moedas discretamente com os olhos enquanto o outro respondia "Uma ajudinha", de dentro do carro.
- O senhor tá pensando que eu sou o quê? Estou trabalhando aqui. Não preciso de esmolas! Mas o farol estava aberto havia alguns segundos, e o carro arrancou. Junto com o ronco do motor e das buzinas impacientes, foi possível ouvir na voz do motorista um certo descaso na palavra "maluco".

O comerciante juntou as moedas - R$0,80. Achava uma falta de respeito contra toda uma classe de trabalhadores, uma caridade hipócrita e nojenta, em suas palavras. Olhou para o lado e viu uma senhor em cadeira de rodas pedindo dinheiro no outro semáforo do mesmo cruzamento. Pensou em dar-lhe as moedas, mas guardou-as no bolso. Vai que preciso de troco...

segunda-feira, 3 de março de 2008

Obrigado!

Acabo de checar o marcador de visitas do blog e encontrei o número 10000.

Obrigado a todos que passaram e passam por aqui e lêem, comentam ou criticam qualquer linha aqui escrita. Saber que tanta gente se interessou no que um maluco como eu tem pra falar, nesse pouco mais de um ano de vida do Poesia e Palavrão, só quer dizer uma coisa: satisfação!

Abraço a todos!

Henrique Fogli