sábado, 12 de abril de 2008

O fenômeno da Comoção Induzida

Já tem alguns dias que o Brasil todo passa por um estado de hipnose. Estamos todos comovidos, revoltados, tocados profundamente por algo muito distante da maioria de todos nós. Como espectadores que torcem para o herói vencer o mau-caráter e ficar com a mocinha ao final do filme, milhares (ou milhões?) de pessoas acompanham passo a passo a mídia para conseguirem a resposta da pergunta do ano: Quem matou Isabella? A pipoca, porém, é feita em casa, haja vista que o caso ainda não foi para o cinema. Uma garota é assassinada. Os principais suspeitos são presos preventivamente.

Polícia, peritos, todos os órgãos competentes e oficiais são chamados ao caso para a tão sonhada apuração da verdade. Pistas aparecem, histórias caem em contradição. Suspense. Ninguém sabe o que aconteceu. Isso é tão normal no dia a dia de São Paulo, que em dezembro de 2007 foram comemoradas as primeiras 24 horas sem homicídios na cidade, desde a década de 50. Nós temos o sangue-frio. Nós vemos mendigos no centro velho, dispostos no chão como sacos de lixo, sem saber se estão vivos ou mortos e reagimos com nojo, com asco. Até que fica banal. Roubo, estupro, negligência, atropelamento, tudo isso já virou arroz com feijão. O que acontece de diferente nesse caso?

A diferença é a exposição da história. Todos os canais, quase que simultaneamente, estão acompanhando todos os mais minuciosos e estúpidos detalhes. A investigação é atualizada todos os dias por profissionais que dizem estar unicamente buscando a justiça. Um sinal de lesão corporal, alguém que troca de camiseta, uma análise grafológica da letra de mão dos envolvidos, qualquer bobagem que possa ser relacionada ao caso é trazida à tona. Os peritos aparecem no jornal de jaleco, fazendo exames, igualzinho àquele programa de televisão que fazem lá fora, como é mesmo o nome? A família, por confiança no poder da mídia, ou por alguma morbidez, se deixa levar e dá um prato cheio para a alcatéia de repórteres: imagens de júbilo e depoimentos com lágrimas e soluços, os dois extremos de emoção que amarram essa corrente podre sensacionalista que se espalha por toda a mídia brasileira.

As pessoas começam a comentar nas ruas: eu acho que foi fulano, eu acho que foi ciclano. A notícia começa a tomar proporções de ficção. Um reality show, uma novela ao vivo, feita sob o bordão da luta pela justiça. Uma comoção articulada, induzida - feita com muito mais minuciosidade que se enxerga e muito menos espontaneidade que se imagina - nasce no coração de todo um povo. Gente que não conhece ninguém envolvido, chora. Outros ficam com ódio. Outros tristes, perdem a fé na humanidade. Fica a impressão que o mundo efetivamente parou para esperar a solução desse caso. Nada mais é importante enquanto o bandido não estiver atrás das grades. Toda a perversão, todo o crime cometido no país é simbolizado naquele ponto, naquela janela, naquela menina, e se o assassino for preso viveremos felizes para sempre. Três dias depois da prisão do dito cujo, poucos se lembrarão do caso Isabella.

Mas pior que a comoção artificial gerada por essa articulação de profissionais treinados para tanto, é a figura que se projeta do jornalista. O mensageiro da verdade, correto, honesto, puro, que luta lado a lado com a polícia para resolver esse tão sórdido mistério. Os jornalistas, a alcatéia toda, fazem plantão na porta da família, mendigando informações do dono do lava rápido da rua de cima, da vizinha que mora no fim da rua há 30 anos, do carteiro que sempre fazia aquele trajeto. Tudo em nome da liberdade de imprensa. Liberdade de imprensa que confina toda uma família dentro de casa e que implica o dever de falar à população sob tormenta. O povo tem o direito de saber, eles vociferam. Evocam a ditadura militar, tempos de repressão, de receitas de bolo na primeira página do jornal. É isso que vocês querem? Nãããão, repetem os hipnotizados. Nós o saudamos, ó nobre cavaleiro, defensor dos oprimidos. São heróis, são exemplos, igualzinho àquele programa de televisão que fazem lá fora... como é mesmo o nome?

Todos se perguntam o porquê. A cena é chocante. Perturba. Aflige. Uma criança é quase sempre vista como o símbolo máximo da inocência do monstro chamado homem. Ela é pura, livre de conceitos nojentos como corrupção ou pecado. É ela que nos faz acreditar no futuro melhor, naquele dia em que tudo será como deveria ser, e talvez por isso custemos a acreditar quando ela cresce e se torna um de nós. Mas nada disso tem a menor importância pra esse caso. Essa não é uma história sobre a perda da inocência na sociedade ocidental, sobre monstros, sobre crueldade e como ela é inerente ao ser humano. Aliás, sequer é uma história. É só uma articulação da forma, na qual o conteúdo pouco interessa. Duas caras, Suzane Richthofen, CSI Miami, Desejo Proibido, João Hélio, tanto faz...

5 comentários:

Diego Moretto disse...

Caralho, to arrepiado. Falou o que faltava ao meu texto. Apesar de serem casos reais e tristes, é visivel a dramatização que fazem em cima de um caso. Eu realmente acho que não foram o pai e a madrasta q a assassinaram, e fico pensando o que deve estar passando na mente desse pai, caso ele seja inocente..
Os holofotes estão em polvorosa tentando achar um bandido e um heroi, e para o papel de mocinho há varios a procura, e isso prejudica e muito q a justiça seja feita.
Enfim, pq não mudar este modo ridiculo de procurar pela justiça..se isso acaba por ignorando-a??

ótimo texto rapaz, me deixou sem folego!
:)

Dedinhos Nervosos disse...

Mais um texto falando sobre o caso, mesmo que seja sobre a cobertura que estão dando ao caso. Realmente isso virou uma novela e a mídia sempre escolhe uma ou outra história para ganhar ares de superprodução na TV. Acho que a ético seria comunicar a morte e só depois os detalhes como depoimentos, investigações, etc. O casal já está condenado antes mesmo de ir a júri, inclusive por mim, que acho que são culpados.

Thiago da Hora disse...

enquanto o povo se emburrece na frente da tv assistindo incansavelmente reportagens repetitivas sobre isabella os deputados aumetaram suas verbas... brasileiro é realmente um povo otário!

Anônimo disse...

Vc foi simplesmente perfeito! Parabens...

tati

Diogo Melo disse...

"The powers that be want us to be passive observers."


O Lobo mau está a solta e uma legião de chapéuzinhos vermelhos se escondem desesperados à espera de um caçador valente que os proteja.

Mas ninguém vê a fantasia peluda que o caçador esconde bem longe das câmeras.