quarta-feira, 27 de junho de 2007

Etimo - lógico

O homem demorou milhares de anos para aprender a falar, a comunicar-se com um conjunto de palavras, dar nome às coisas, aprender a escrevê-las e depois desmembrar tudo isso nas centenas de línguas que temos hoje. Convenções foram feitas, sábios foram reunidos. Não foi nada fácil.

- Como nós vamos chamar isso aqui?
- Hmm. Que tal cadeira?
- Cadeira? Por que cadeira?
- Ué? Por que não?
- Sei lá. Achei esquisito.
- Chama de cadeira e pronto, caralho.
- Caralho! Taí! Gostei! Que tal caralho?
- Tá bom, vai.

Assim nasceu o primeiro palavrão da história: caralho. Claro que não foi criado com o intuito de ser uma palavra rude, agressiva, nada disso. Mas com o surgimento do pênis, o caralho caiu em desuso e foi ficando marginalizado. Além de adquirir outros significados.

Foi a mesma coisa com a "foda". Foda só queria dizer aquilo. Depois veio o coito, a transa, a trepada, todos transformados em monstros pela "relação sexual", que no devaneio dos românticos virou "fazer amor". Num processo inverso a foda, hoje, pode significar qualquer coisa. É o coringa da língua portuguesa.

- Você viu o golaço do Silvinho?
- Foda, né?

- Cara, não vou. Meu pai tá doente. Vou com ele no hospital.
- Foda heim?

- Como foi a reunião?
- Ah, foi foda.

Os exemplos são infinitos. Foda pode pertencer a qualquer classe gramatical. E esse é um fenômeno semântico irreversível. Cada vez mais as palavras serão menores e com mais e mais significados. Serão comprimidas, reduzidas a traços, soluçadas. Primeiro serão as vogais, depois todo o resto. Uma a uma as letras darão espaço ao nada, a uma simples entonação de gemidos, ou a desenhos de carinhas amarelas fazendo qualquer coisa que se saiba dizer. Ou não se saiba mais. É foda...

terça-feira, 26 de junho de 2007

Só mais um...

Walter nascera para ser sombra. Era medíocre no sentido literal da palavra. Nunca se destacara em nada, tampouco se esforçara para tanto. Colecionava insucessos no vazio pálido de sua existência insossa.

Pessoas como Walter tendem a ter uma adolescência traumática. Viram alvo de brincadeiras que elas mesmo nunca fariam, o que faz nascer uma espécie de revolta, bem como um desalento pelo mundo e seus habitantes. Isso colocava Walter numa espiral de desgosto, misturada com raiva e vergonha.

Mas de todas as vexações que a vida reservava só para ele - como ele mesmo sempre repetia - a que mais detestava era ser "o cara". Nunca era chamado pelo nome, por quem quer que fosse.

- Você que é o cara do celta branco, né?
- Isso seu Gilmar. Por quê?
- Porque você não soltou o freio de mão e bloqueou a vaga do 21.

Era sempre isso. O cara do celta branco. O cara que levou fora da sujinha na sexta série. O cara que apanhou do geléia. O cara que era a cara do cara que eu não lembro o nome. Era uma sucessão de títulos, troféus pelo seu anonimato.

Mas chegou o dia em que Walter Soeiro Sales da Cunha fez-se ouvir. Marcaria o país, não, o mundo com seu nome. Não faria algo brilhante, de forma alguma. Faria algo trágico, talvez hediondo. Seria um divisor de águas na história recente da humanidade.

E foi assim que numa manhã de segunda-feira, Walter decidiu ser o primeiro homem bomba brasileiro. Explodiu-se num parque de diversões, matando crianças e mulheres, um horror. Usou tantos explosivos que seu dramático bilhete suicidade nunca pode ser restituído. Seu corpo nunca foi identificado.

Alguns dias depois, na empresa onde trabalhava, a conversa não poderia ser outra.
- Você viu quem morreu?
- Quem?
- O cara do financeiro...

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Desejos secretos

"Nossa, como ela tá diferente hoje. Não sei o que é. É a roupa dela? Ela trocou de óculos, é isso. Ficou com cara de mais nova. Não consigo tirar os olhos dela. Porquê? Ela tá mais magra, sei lá. O peito parece que tá maior. Eu nunca tinha reparado naquelas sardas no peito dela. O peito dela. Tô com vontade de morder o peito dela, apertar, sei lá. Ela ficou bem mais bonita de cabelo solto. Mas esse decote... não consigo parar de olhar pros peitões dela..."

"Ele tá bonito com esse cabelo jogadinho, mas eu deixaria ele mais bagunçado, mais moleque. Aliás, ele tá ganhando corpo, ficando sarado. Mas essa carinha de bebê dele é linda demais. Uma pele macia, deve ser uma delícia beijar esse corpo gostosinho dele, ver esses olhos verdes virando de tesão. Subir em cima dele e dominá-lo, vendo a surpresa no olhar dele enquanto ele toca meu corpo, chupa meu seio... Será que o pinto dele é grande?"

Ambos desejos correram secretos e simultâneos. Trocaram poucas palavras naquele dia, quando ele levantou a mão:

- Sim Lucas?

- Profê, posso ir no banheiro?

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Quando o amigo se vai

Era um sábado ensolarado, mais ou menos por volta da hora do almoço. Um grupo de amigos é abalado por uma notícia triste.

- Alô!
- Alô, Beto?
- Fala Marquinhos, tudo bom cara?
- Mais ou menos. Ficou sabendo do Cabeça?
- Putz... fiquei. Quem diria né?
- A gente nunca acha que vai acontecer com alguém próximo da gente...

O Cabeça, junto com o Beto, o Marquinhos, o Cabelo, o Serginho, O Naldo e o Arara eram um grupo de amigos da época das bolinhas de gude. Cresceram juntos, e como a vida vai ficando corrida, começaram a se encontrar cada vez mais esporadicamente, mas sempre com a mesma intimidade.

- Alô, Cabelo?
- Fala Beto, beleza?
- Não cara... ficou sabendo do Cabeça?
- Pô, eu que avisei o Marquinhos e o Naldo. A Done Elzira ligou aqui perguntando se a gente vai lá.
- Eu não vou cara. Não curto. É uma choradeira, muito barra pesada pra mim.
- O Naldo também não vai.

Claro que o Naldo não ia. Todo mundo sabia que ele não suportaria. O Cabeça era o mais novo da turma. Perder um amigo nessas condições era mais do que trágico e o Naldo não conseguiria conter as lágrimas. Apesar do Cabelo sempre ter sido o mais próximo do Cabeça, o Naldo era filho único, e tinha o Cabeça como um irmão mais novo.

- Não vou, Serginho.
- Mas Naldo, a Dona Elzira, o seu Mendonça, todo mundo espera que a gente vá.
- Eu sinto muito. Mas não vou!
- Até o Arara vai. Tá vindo de Araraquara.
- Pois eu e o Cabelo não vamos. A gente combinou de tomar uma em memória do Cabeça. No Saideira.

O Saideira. Quantas cervejas aquele grupo todo tomara no boteco do seu Mané. Lembranças enchiam a cabeça de Naldo, enchendo seu peito de saudade e seus olhos de lágrimas. O Cabeça, meu Deus, tão novo. Acho que foi lá que ele conheceu a Claudinha.

- Pois é. A Claudinha.
- Eu sempre falei que aquela mulher era capaz de tudo, Arara.
- É. Eu lembro. Você vivia falando que ela ainda matava o Cabeça do coração.
- Pois é né? Quem diria!

Sim. O coração. O coração matara Cabeça. Roubara-o de seus amigos de uma maneira covarde, cruel até. O ingênuo Cabeça, sempre tão companheiro, abandonara os parceiros de uma vida toda assim, prematuramente. Seus amigos usariam preto aquele sábado.

- Vamos Carlinhos, sai desse telefone. Vai se arrumar.
- Já vou mãe. Você vem né Arara?
- Vou sim. Tô na estrada já. Afinal, talvez seja a última vez que eu te veja.
- Credo Arara. Até parece que morreu alguém. Eu só tô casando, cara.
- Não enche, Cabeça.

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Fernando Fernandez, fotógrafo

Mais um dia típico na vida de Fernando Fernandez. Acordou cedo, encontrou sua equipe no aeroporto, e lá foram eles para outra praia do mundo fotografar mulher pelada. Dessa vez o destino era Dubrovinik na Croácia. E eram duas modelos: Beatriz Bobó - morena, 1,78m, medidas 101, 68, 104, olhos verdes e super desinibida e Deborá Dadá, ruiva, baixinha, peitudaça e - segundo as más línguas - ninfomaníaca.

- Isso, agora coloca a língua no bico do seio dela... Isso - clique - Iiisso, aí - clique, clique.
- Agora Bobó abraça a Dadá por trás, uma mão no seio e outra na pepeca... Isso - clique, clique.

Ensaio de dia, festa à noite. Era verão e a cidade estava cheia de beldades européias, além das duas preciosas brasileirinhas. Fernando tinha uma suíte enorme alugada em seu nome, álcool, contatos e drogas suficientes para garantir a diversão para todos os convidados.

- Ai Fernandinho... eu não sabia que você era tão gostoso assim... hmmm... hmmmm...
- Nem eu Fernandinho. Que delícia de homem. Dando conta de duas.

Fernandinho não abrira a boca - não para falar pelo menos - durante toda aquela noite. Transara com as duas modelos, com mais uma garota da Letônia que conhecera aquela noite e tinha fumado somente ervas jamaicanas - "Nada de cigarro pra mim hoje". No fim da festa foi até a varanda, onde Ricardinho, assistente de iluminação que fazia sua primeira viagem a serviço com essa equipe, estava maravilhado olhando as estrelas, agradecendo a Deus por estar ali naquela noite. Vendo Fernando, correu à sua direção e o abraçou.

- Obrigado Fernando! Obrigado! Essa foi a festa mais doida que já fui na vida.
- É né?
- Demais cara, demais! Nunca vi tanta mulher gostosa junta! Todo mundo loucaço, trepando... Irado.
- É...
- Sem contar que o trampo é do caralho também. Viajar o mundo, conhecer lugares maravihosos. Fotografar mulheres mais maravilhosas ainda... Você é o cara mais feliz do mundo.

- Nem tanto, nem tanto.
- Como não? Qualquer um trocaria a vida que leva pra estar no teu lugar!
- E eu daria tudo pra sair dela. Não agüento isso. Descobri que não gosto de fotografia. Tenho talento, faço bem, direitinho, mas não gosto. Aliás, odeio. E essa vida de comer mulher que mal se conhece, cada dia 3 mulheres diferentes, não suporto mais isso. Eu devia ter ouvido minha mãe...

- Cara, você tá bem? O que que você fumou?
- Não tô bem não cara. Minha vida é uma farsa. Eu sempre quis ser contador. Entrada e saída de dinheiro. Diretrizes orçamentárias. Balanço anual e mensal. Lucro, despesas. Isso sim que é vida. Entrar às 9, sair às 6. Trânsito. Chegar em casa e encontrar sua mulher. Juntar grana pra comprar um carrinho semi-novo no fim do ano. Coisas simples cara, coisas simples...
- Você tá viajando. Essa vida é uma merda! Você sim tem do bom e do melhor. Pode ter o que quiser a hora que quiser. É famoso, rico... Fernando parecia não ouvi-lo.

- Mas eu tô tão enterrado nessa merda de vida que não dá mais. Não dá pra abandonar tudo aos 36 anos e começar do zero. O mundo não entenderia. Seria perseguido por jornais e revistas. Minha vida viraria um inferno talvez ainda pior do que já é.

Dessa vez Ricardinho puxara-o pelo braço e teve certeza que fora ouvido. Apertou-o com força, chacoalhou-o e, olhando Fernando nos olhos falou em tom severo "Cara, sai dessa. Você é Fernando Fernandez. O melhor fotógrafo do Brasil. Respeitado, famoso e rico. Ganha a vida vendo mulher pelada. O que mais você quer???"

- A única coisa que não posso ter, uma outra vida - respondeu Fernando com serenidade. E completou - Mas isso pode ser facilmente resolvido. Ergueu a cabeça em direção ao horizonte, e foi em sua direção. O garoto ainda tentou impedi-lo da besteira iminente. Fernando lutou para livrar-se de Ricardinho, que o segurava com força. Trocaram alguns socos. Assim que Fernando viu-se livre de seu assistente, subiu no parapeito da varanda e, sem hesitar um segundo sequer, atirou-se do décimo quarto andar.

Os sinais de luta no corpo dos dois renderam 14 anos de cadeia para Ricardinho, acusado de assassinato. Ninguém nunca acreditou em sua versão.